sexta-feira, 7 de março de 2014

#61 Reflexo

A vontade de conhecer a verdade, de se conhecer de verdade, levava a um esforço continuado da Sara, para conseguir atingir tal estado. Mais do que um esforço, no sentido de obrigação, de algo que se faz porque se tem de fazer. Ela fazia-o porque era o seu desejo, ela já havia experienciado pequenos momentos de conexão com esse todo que era a essência. Mas aquilo que ela procurava era suplantar as barreiras criadas que a impediam de manter essa conexão e em vez de fugazes conexões, ela procurava a eternidade presente em cada momento. 
Tal como o Ricardo lhe havia recomendado ela praticava o auto-inquérito, interrogando-se sobre as verdades que tinha como certas e que desde que havia iniciado este processo de busca de si mesma, se haviam esfumado. O que antes era inquestionável, agora já não permanecia igual. Aquilo que era a ideia que possuía sobre si, sobre quem era e o que era esperado dela. Quer aquilo que ela acreditava que necessitava, quer aquilo que as pessoas que compunham a sua vida lhe lembravam ser suposto ocorrer na normalidade da vida de cada um de nós. 
A certeza dos trajetos que é suposto serem caminhados por cada ser humano, enquanto identidade insofismável daquilo que nos define enquanto tal.
No entanto a Sara já havia suplantado os cânones dessa suposta normalidade, já não sofria por não se ver a percorrer esse caminho do esperado. De se entregar ao lusco fusco do dia-a-dia da vida humana. Dos percursos casa-trabalho-casa, da criação de família e respectivo seguimento. Sendo mais um elemento, mais uma peça dessa engrenagem de autómatos com destinos traçados e sem vontades reais para lá das superficiais alinhadas num materialismo.
Sara havia atingido um ponto sem retorno, o seu nível de consciência tinha sido esticado a um ponto que não permitia encolher ao formato anterior, ao estado de dormência anterior. Já não voltaria a fechar os olhos para aquilo que era já evidente em si, para aquilo que assomava em cada milímetro do seu ser. Nenhum limite poderia conter aquilo que não tem contenção. Nenhuma definição era suficiente para descrever a plenitude do existir e que ela já havia saboreado. Depois de tomado o gosto, depois de um vislumbre do despertar, nenhum sono se permite estabelecer que contente os limites da suposta normalidade humana.
A forma como ela procurava imergir na essência era através da observação, tal como desafiara o Ricardo, observar o que surgia em cada momento. Sem dogmas, sem certezas, sem rejeições. Apenas presente, totalmente disponível para aceitar o que se manifestasse. Apenas observando.
Ela tinha tomada a decisão de deixar alimentar a história, dessa personalidade conhecida por Sara, através de um reviver constante das memórias de um passado que não tinha sido a perfeição que então julgava ser necessário. O passado existe apenas sob a forma de memória, sob a forma de pensamento que se manifesta no momento presente. E quando estamos focados em alimentar essa história, na verdade aquilo que fazemos é limitar a nossa perceção sobre aquilo que somos de verdade. Alimentar a história dessa personalidade que acreditamos ser, é ficar prisioneiro dos pensamentos, é colar nessa teia e deixar de ver que somos o espaço onde ela é tecida e não a teia em si.
Perante o seu atual nível de consciência a Sara sabia que essa personalidade já não a limitando era no entanto útil para vivenciar a experiência humana que estava vivendo. Sabia que livrando-se das grilhetas dessa história limitante, se podia permitir agora desfrutar em pleno esta experiência humana, tal como ela se apresentasse, sem com isso crer que de alguma forma poderia molestar o que quer que fosse a sua essência.
Essa certeza resultava no reconhecimento de um serenidade que não era imposta, uma serenidade que não era procurada desesperadamente, como fizera em grande parte da sua vida. Mas sim uma serenidade que sempre esteve presente, que é anterior a qualquer manifestação nesta sua experiência humana e que continuaria a estar presente quando esta terminasse.
Com tal serenidade a Sara sabia que se podia abandonar a viver a sua realidade humana com todas as imperfeições que lhe são inerentes. Deixando de se criticar impiedosamente e com constante medo sobre o que os outros poderiam pensar, deixar de procurar agradar os outros e fazer o que era esperado que fizesse no cumprimento do seu papel enquanto mulher na sociedade atual.

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