O normal serve como disfarce para o medo de se olhar de frente, para o medo de aceitar a realidade como ela é. Era este normal que a Daniela procurava todos os dias. Quando as pessoas lhe perguntavam como tinha sido o seu dia, a sua resposta era sempre a mesma "Normal". Se lhe perguntavam como se sentia face aos acontecimentos variados que a vida proporciona, a resposta continuava a ser a mesma, "Normal".
Esta suposta normalidade resultava do medo que tinha sempre latejante de perda de controle, de perda de identidade. Era a sua fuga pará frente, por forma a evitar olhar dentro de si e resolver o impacto que a doença da irmã lha havia causado. Pensava ela que se empurrasse todos esses medos para o mais recôndito lugar em si, que não teria de lidar com isso e que a sua suposta normalidade poderia continuar a existir na sua realidade.
No entanto todo este processo que havia iniciado, desde que conheceu o Ricardo e a mensagem que ele veiculava. Havia mexido com ela de uma forma que não podia prever e muito menos controlar. Sentia que a sua vida normalizada estava ameaçada, estava em vias de extinção. E isso deixava-a ansiosa, deixava-a apreensiva sobre aquilo que o futuro lhe reservava.
Por outro lado uma revigorante certeza de que acontecesse o que acontecesse, ela estaria bem. Permitia que, ao contrário do que acontecera até então na sua vida, ela se sentisse compelida para seguir em frente, para enfrentar o que tiver de ser. Sem desvio, sem evitar o que quer que fosse. Estava recetiva a perceber até onde teria de ir, que surpresas lhe estavam reservadas pela vida.
Era dia de mais uma sessão com o Ricardo e a Daniela tinha o desejo que o tempo passasse depressa. Uma sensação de pressa de viver, havia-se apoderado dela. Sentia que a sua vida tem existido sob uma espécie de suspensão. Que de verdade mais que viver apenas tinha existido até ai, tal qual um autómato. Sentia, agora, que havia estado de facto ausente da sua vida, que tinha procurado sempre não sentir demasiado, não se entregar demasiado com medo do que dai pudesse resultar. Dai que a ideia de normalidade lhe conferisse uma certeza, um conforto. No entanto agora, tudo isso deixara de fazer sentido para si. Essa suposta normalidade era vista como um deixar andar, como se estivesse desligada da vida, apenas funcionando em piloto automático.
A sessão começou precisamente pela descrição de todas estas sensações que a preenchiam. Ela partilhou com o Ricardo estas ideias que tinha sobre o facto de ter concluído que na verdade não tem vivido a sua vida, mas sim uma espécie de versão normalizada da sua vida. Algo que ela classificou de amorfo e que ela justificava, agora, no seu medo de perder o controle. No medo de perder a noção da realidade, tal como havia ocorrido com a sua irmã. E que por isso mesmo aquilo que ela acabou por adotar para si, foi viver dormente, funcionando em piloto automático, como forma de se proteger. De proteger a personalidade que tinha como sendo a sua e que tanto cria preservar. No entanto, confidenciou ela, sentia que já nada mais era o mesmo. Que o processo - como ela gosta de o classificar - que havia iniciado a partir do momento em que o conheceu; esse processo já era irreversível. A pessoa que julgava ser e a vida que levara até então, não mais poderia ser de igual modo. Mesmo que quisesse, já não conseguiria voltar ao seu estado de "normalidade" anterior. Desconhecia onde tudo isso a iria levar, desconhecia o que quer que viria ao seu encontro. A única certeza é que nada mais seria igual.
Ela continuou dizendo "tudo isto que se tem passado comigo, toda esta reflexão que tenho feito. Fez reavivar memórias em mim que julgava enterradas. Vou-lhe confidenciar algo que nunca partilhei com ninguém. Naqueles anos em que se revelou a doença na minha irmã e que de algum modo revolucionou as dinâmicas familiares. Como forma de proteção, o isolamento era uma das minhas opções preferidas. Julgava eu então que desse modo me protegeria de perder, também, a noção da realidade. Ainda que as reações que perpassavam no meu corpo quando se dava mais um episódio de descompensação me sinalizavam que de facto essa proteção não era como eu desejava que fosse. Um exemplo disso eram os episódios que me ocorriam, por vezes, durante a noite. Em que eu acordava e como que sentia que outras vozes, que não a minha, se faziam ouvir na minha mente. Como se alguém diferente estivesse dentro de mim. Claro que isso era assustador para mim. Pensava se estaria a ficar louca, se estaria também a perder a noção da realidade. A minha forma de lidar como isso e fazer com que essas vozes cessassem era recitar vezes sem conta o meu nome completo, a minha data de nascimento e dos restantes membros da família. De alguma forma isso resultava, pelo menos para mim resultava e voltava a adormecer. De manhã quando despertava, ainda que me recordasse de tudo, sentia que tinha o controle total, que tinha a consciência plena de quem era."
" E o que lhe diziam essas vozes, recorda-se?" Perguntou o Ricardo.
"Não tenho memórias específicas do que diziam, pelo menos neste momento não me recordo de nada. A ideia que tenho é que era como se houvesse uma tentativa de dialogo entre essas vozes e eu mesma. A única coisa que me recordo e aqui não sei precisar quando é que essa frase foi dita, é algo do género 'ela ainda não está preparada'. Mas como eu fazia tudo para as evitar, não lhes dava atenção e tudo passava."
" E foram frequentes esses episódios?"
"Raramente ocorriam, tanto quanto me consigo lembrar."
" Do seu ponto de vista o que acha que essas memórias, que surgem neste momento, lhe querem transmitir, face a tudo o que me relatou de mudanças que sente que lhe estão a ocorrer?"
" À luz de uma nova visão de tudo isto e de acordo com tudo o que tenho lido do que escreve, mas acima de tudo, daquilo que sinto em mim. Julgo que essas vozes poderiam ser a minha consciência mais elevada a tentar comunicar comigo. A tentar que eu pudesse lidar com a situação de outro modo, que pudesse estar mais recetiva sobre o que tudo aquilo me poderia ensinar. Mas isso é sabendo o que sei hoje, naquele tempo, nada disto faria sentido para mim. Não teria a capacidade de o entender, julgo eu. As mudanças que se começam a refletir em mim tem a ver com uma visão mais ampla daquilo que sou e do meu papel no mundo. Acredito que nada acontece por acaso e que tudo pode servir para descobrirmos a verdade sobre quem somos."
"Referiu que se recorda de que essas vozes lhe teriam dito que ainda não estava preparada. O que acha que seria isso que não estava preparada para?"
Após uma pausa para absorver a pergunta e ponderar na resposta, disse:
"Eventualmente não estaria preparada para me conhecer de verdade. Para lidar com a realidade que estava presente naquele momento na minha vida. E que preferia ignorar, olhar para o lado, em vez de lidar com tudo aquilo de frente. De todas as formas interrogo-me se, sendo adolescente, poderia lidar com tudo aquilo. Se teria forma de agir de outro modo, de ver tudo aquilo de outro modo."
" A realidade diz-nos que não. Não estava preparada para o fazer. E sei isso, porque foi o que se passou. Segundo as suas palavras, preferiu tentar ignorar em vez de lidar de frente. E se quer saber, esteve certa a fazer isso, porque mais uma vez, foi isso que fez. A realidade esta sempre certa, tem sempre razão. Só ocorre aquilo que tem de acontecer e temos sempre a escolha de lidar com a realidade da forma que entendermos ser a mais adequada. E seja qual for as nossas escolhas, temos em cada momento a oportunidade de escolher de novo. De fazer novas escolhas e que serão as certas nesse momento para nós. A vida que somos cuida sempre de nós, dando-nos sempre aquilo que precisamos, mesmo que não tenhamos consciência disso."
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